terça-feira, 9 de março de 2010

Nostalgia

É irreversível. Não há nada que possamos fazer, salvo entregarmos por completo nossa consciência ao êxtase da nostalgia. Talvez seja este o motivo pelo qual o passado nos comova profundamente, pelo singelo fato de que são exatamente em nossas memórias que vivenciamos de maneira imutável, e nos felicitamos - ou nos entristecemos - com nossas ações, ou decisões que tomamos há muito, ou há pouco, e nos vangloriamos de sábias escolhas - e nos arrependemos e aprendemos com atos desnecessários - simplesmente porque nosso passado é ostentado pela imutabilidade.
O passado à mim revela uma criança tímida, frágil, ultracuriosa e reservada, que a mãe lhe carregara por sete anos, entre hospitais e farmácias. O passado à mim evidencia a criança com meias ao chão, apoiando-se na ponta de seus pés almejando ver seu reflexo no gabinete do banheiro. O passado me traz à tona o amendrotado garoto numa mesa cirúrgica, o pequeno inocente que não entendia por que seu irmão não conseguia levantar-se da cama e brincar com ele. O passado rotula-me como um patinho feio - sem amigdalas - de poucos amigos, de muito potencial, proprietário do refúgio em ler e escrever - e desenhar - e expectador de conflitos conjugais, o que me fazia cada vez mais questionar os porquês e talvez que a vida quinquilhava-me. O passado à mim remete o repudiado amante, a trágica aparência rota, e o desconhecido ritmo de vida dum garoto normal. O passado atormenta-me com o semblante dum garoto que nunca teve alguma festa de aniversário, que desconhece o tamanho do mar ou a temperatura duma areia de praia, que nunca brincou com brinquedos que não fossem dele, ou mesmo o adolescente que mal saíra, que quando encontrou escassos amores fora traído e de ódio fora consumido, manchado por três gotículas de desamor, do altruísta emputecido, a insistente e duradoura aparência rota, do escasso monetário e físico imperfeito, da responsabilidade precoce e dos tantos sacrifícios por quem se ama. Outrossim, o passado presenteia-me com imagens de reuniões familiares, as melhores notas, a salada de frutas de minha mãe, os bolinhos de chuva das tardes gélidas semanais, as receitas secretas de vovó, da culinária receptiva ao meu finado avô, o único primeiro amor, o inevitável primeiro beijo, a anual caixa de BIS, o instante em que vi meu reflexo ao gabinete do banheiro, dos longos cabelos negros de minha mãe contrastante a minha bochecha corada, dos primeiros amigos que emprestaram-me os primeiros brinquedos, memórias de quem não podem mais voltar, e de uns outros que talvez tornem a voltar, o primeiro salário e também a impagável experiência de aprender a andar de bicicleta aos 15 anos, bem como as luvas de dedos coloridos, os dentes de leite e a diversidade nos penteados e cortes.
O passado. O irremediável. A prazerosa e didática nostalgia. A imutabilidade em meio à diferença - e a indiferença. Já não importa preocupar-se com o passado, o que importa é revivenciá-lo por lembranças, afinal, o passado sempre se resume à meias estampadas, furos de dedos em bolos, mães preocupadas, pais estressados, canjas de galinha e chás de aprendizagem.

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